segunda-feira, 19 de março de 2012

MOEBIUS (1938 - 2012)

Foto de 2009: Franck Fife

Ao Mestre, com gratidão.
Pelas veias da comunicação em rede, no blog do Paulo Coelho ( http://paulocoelhoblog.com/  post de 10 / 3 / 2012), vi a notícia da partida de Moebius, um dos maiores quadrinistas do século XX, cuja obra publicada intensamente nas décadas de 1960 a 1980, criou uma revolução cultural comparável ao Renascimento, no caso dele, o Realismo Fantástico.

A primeira vez que vi um desenho dele, foi uma mudança de consciência. A realidade e o fantástico se tornaram igualmente palpáveis e visíveis. Era inacreditável. E, de repente, me tornei um caçador do “Incal”, a história em quadrinhos que me abriu as portas para o eterno diálogo / confronto entre o mito e a vida comum. Em dia de pagamento, quando dava, lá ia eu às livrarias especializadas, Cultura, Aliança Francesa etc. procurar um dos “álbuns”, objetos de desejo.

O meu primeiro contato – capa de revista de 1996

O Incal é uma saga de ficção científica em quadrinhos criada pelo escritor, poeta, mago e cineasta chileno Alejandro Jodorowsky e ilustrada pelo francês Jean Giraud, o Moebius. Originalmente destinava-se a ser o guia de produção (story-board) de um filme para cinema, mas este projeto nunca foi realizado. Foi publicada em capítulos na revolucionária revista francesa "Metal Hurlant". Estreou no número 58, em 1980. No Brasil, foi publicada pela Devir entre 2006 e 2007, em três volumes.

Jodorowsky e Moebius (pronuncia-se Môbius)

Segundo a Folhaonline, toda a história foi reunida numa edição única, "Incal Integral", que começa a chegar nesta semana às livrarias e lojas especializadas em quadrinhos (a capa mostra John Difool e a “gaivota de concreto” escapando das garras de uma espécie de aranha cibernética).


O argumento é: em um futuro distante, o detetive particular John Difool recebe um cristal muito poderoso, o Incal Branco, das mãos de um alienígena moribundo. Desse contato, ele ganha a incumbência de dar um novo destino ao planeta. O Incal é disputado por diversas facções: os alienígenas, o governo, os rebeldes e uma seita tecnológica que adora o Incal Escuro.


Em fuga, John Difool e seu pássaro de estimação, Deepo, uma "gaivota do concreto", são forçados a juntar forças com outras pessoas que também procuram o Incal: o Metabarão, as irmãs Animah e Tanatah, Solune (um messias andrógino) e Kill, um mercenário com cabeça de cachorro. (Wikipédia)
John Difool e Animah, Tanatah, Kill e o Metabarão.

Ninguém menos do que Federico Fellini era seu admirador. Numa carta enviada a Moebius em 23 /6 /1979 e que foi usada como introdução da Heavy Metal especial sobre o ilustrador em 1981 (reprodução abaixo) assim se manifestou:
“Que grande diretor de cinema tu serias! Nunca pensaste nisto?
O que há de mais admirável nos teus desenhos é a luz – sobretudo nos teus desenhos em preto e branco: uma luz fosfórica, oxídrica, luz de lux perpétua, de limbos solares...”
  
“Que grande diretor de cinema tu serias! Nunca pensaste nisto?
O que há de mais admirável nos teus desenhos é a luz – sobretudo nos teus desenhos em preto e branco: uma luz fosfórica, oxídrica, luz de lux perpétua, de limbos solares...”  


Moebius tem um papel importante em várias superproduções do cinema. Foi o diretor dos efeitos visuais da série de filmes "Alien" de Ridley Scott. Os filmes "O Quinto Elemento", “Blade Runner” e "Tron" (da Disney em 1980, película que explora os efeitos especiais proporcionados por programas avançados de computador). Mestre de science-fiction, esteve presente, com story-boards e direção de arte, em superproduções como “Duna”, de 1984, dirigido por David Lynch, uma história que se passa em 10.190 D.C. e onde a estrutura social, regredida a tempos medievais, ainda funciona de termos capitalistas.O gênio abrangente de Moebius o levou a estar presente em obras de arte tanto futuristas quanto ancestrais. É o caso do desenho animado japonês (produzido pelo estúdio Tókyo Movie Shinsha em 1985) desenhado por ele (que foi a Tóquio para trabalhar no projeto) baseado nas histórias de “Little Nemo”, personagem  principal de uma série de tiras semanais criadas por Winsor McCay (1871 - 1934) e publicadas nos jornais New York Herald e New York American de William Hearst, entre 15 de outubro de 1905 - 23 de abril de 1911 - 1913, respectivamente. Nessa obra Moebius fez scripts, backgrounds e costume design.





O pioneirismo desses quadrinhos excepcionais tem várias faces. Embora fosse história em quadrinhos, estava longe de ser uma simples fantasia para crianças; com frequência, era sombria, surreal,  ameaçadora e mesmo violenta. A tira narrava os sonhos de um garotinho Nemo (que significa "ninguém" em latim), o herói. O último quadro de cada tira sempre representava Nemo acordando, geralmente sobre a cama ou perto dela, e frequentemente sendo repreendido (ou consolado) por um dos adultos da casa, depois de gritar durante o sono e acordá-los. As aventuras que levavam a desastres tinham todas um propósito em comum, chegar à Slumberland, onde ele havia sido chamado pelo rei "Morphy" Morpheus, para ser o "coleguinha de folguedos" de sua filha, a princesa Camille. 

O Nemo desenhado pelo autor, McCay
Entre as qualidades mais notáveis dos quadrinhos de Nemo estavam o intrincado estilo visual - frequentemente com altos níveis de detalhes de fundo - cores vívidas, andamento rápido na movimentação de um quadro para outro e a grande variedade de personagens e cenários estranhos. Isto veio a influenciar fortemente o estilo de Moebius, fato que ele mesmo declarou. (Wikipédia)

A "Slumberland" ("terra dos sonhos") do título logo adquiriu um duplo significado, referindo-se não apenas ao reino encantado de Morpheus, mas ao estado de sonho propriamente dito.

As histórias dos álbuns da Coleção “Moebius”, da Nemo, e de “Incal”, da Devir, ajudam a entender bem o impacto exercido pelo desenhista.

Além da temática adulta e de ficção científica, com roteiros muitas vezes surreais, as histórias expõem o detalhado traço do autor. O mesmo traço que ele levou ao mercado norte-americano. Ele fez parceria com o escritor Stan Lee numa edição especial do personagem Surfista Prateado.

Surfista Prateado publicado pela Abril em 1989

A história já foi publicada no Brasil, pela Abril. A editora também lançou, na mesma época, outro trabalho europeu de Moebius: a série de faroeste "Tenente Blueberry", retomada, anos depois, pela Panini.
Blueberry: capa de uma das primeiras edições e uma gravura produzida a partir da história
Em 1959, séries que fariam enorme sucesso nos anos 60, uma era de liberdade e de criatividade, de paz e amor, nasciam na França e em toda Europa. Uma delas era “Asterix, o Gaulês” de René Goscinny e Albert Uderzo. Havia também “Tintin”, de Hergé (George Remi). Na mesma época, em 1967,  um italiano de nome Hugo Pratt desenvolve seu principal personagem, tão inspirador às novas gerações quanto Moebius: Corto Maltese, um marinheiro romântico e aventureiro que vivia em situações místicas e com belas mulheres.


Mas a série escrita por Charlier e desenhada por Jean Giraud, nome de juventude de Moebius, foi sucesso em dois continentes. A revista Fort Navajo apresentava o “Tenente Blueberry” que é uma história de faroeste diferente, onde o personagem principal não é necessariamente um herói, e não raro alia-se aos índios contra as tropas norteamericanas. Tinha em seu início a fisionomia baseada na do ator Jean Paul Belmondo, para que se destacasse dos “heróis” de faroeste, como Jerry Spring, Tex Willer e Bronco Piler, todos efetivamente “bons moços”. Charlier e Giraud criaram um anti-herói, uma figura que tinha uma leitura crítica sobre seu próprio momento, refletindo a crítica de seu escritor acerca do período colonialista norteamericano.

O desenho do Tenente Blueberry se sobressaiu, apresentando ao mundo Jean Geraud, ou Moebius (*). Seu traço era épico e realista, fazendo com que se tornasse desenhista-referência no mundo editorial francês.

Jean Gerald nasceu em família pobre. A idéia do Tenente Blueberry veio de uma temporada que viveu no México com sua mãe. Aos 16 anos, em 1954, entrou École des Arts Apliques em Paris e aos 18, começou a colaborar com diversos periódicos, onde realiza suas primeiras histórias estilo faroeste.

Moebius, então, sem deixar de desenhar Blueberry, junta-se a Phillipe Druillet, Jean-Pierre Dionnet e Bernard Farkas para a criação da Les Humanoides Associés, editora que lança em 15 de janeiro de 1975 a seminal revista Métal Hurland. A revista servia para que seus autores pudessem dar livre curso à imaginação, sem ficarem presos às imposições editorais ou às exigências dos leitores. Dionnet define Métal Hurland como “uma revista de histórias em quadrinhos e de antecipação, sem heróis musculosos nem mísseis cromados… Uma revista de fantasmas utilizando a técnica dos quadrinhos de aventuras…” fonte: http://jornale.com.br/esquadrinhando/2009/03/30/historia-dos-quadrinhos-parte-14-europa/


(*) August Ferdinand Möbius, matemático e astrônomo alemão (1790 - 1868) uma comunidade escolar na Saxonia, onde o seu pai Johann Heinrich Möbius lecionava. A sua mãe, Johanna Katharine Christiane (1756-1820) era descendente de Martinho Lutero de sétima geração. Seu trabalho mais conhecido é provavelmente a fita de Möbius, amplamente estudada e utilizada em matemática aplicada, geometria e astronomia. (ver August Ferdinand Möbius na Wikipédia). O pseudônimo Moebius (nome de batismo do matemático alemão) veio depois de o artista assinar desenhos para revistas e livros de ficção científica nos anos 1960.


Moebius foi um trabalhador incansável, produzindo a todo vapor e evoluindo seu estilo a cada novo projeto. Um deles foi “A Garagem Hermética”, quadrinhos que, segundo Jodorowsky, representa o topo do comix contemporâneo. “Abre um capítulo incrível e serão considerados como a pedra angular de uma nova cultura ... não é uma HQ cômica, nem artística, nem épica, nem dramática, mas sim tudo isso de uma vez, sem coerção dos cânones artísticos ... tudo se encontra em estado de demolição, mas no interior da história, tudo tem uma lógica, a lógica do sonho”.

Moebius declarou publicamente que produziu a “Garagem” sob o efeito do uso de LSD.


N’ “A Garagem Hermética”, em cada episódio, pelo mesmo artista. Neste quadro vemos um automóvel (por incrível que pareça) sendo examinado pelo proprietário para o que o título anuncia: “uma revisão perigosa”tudo muda, personagem, paisagem, enredo, estilo – contudo sabemos que permanecemos na mesma história desenhada 

Outra obra-prima de Moebius é o story-board de ORN. O estranho nome é de um capitão de um navio mercante que, quinze anos antes da época em que a história criada por Frédéric de Foucaud foi publicada se chamava CAP HORN, cujo casco havia sido corroído pela ferrugem até não deixar mais do que estas três letras.

A abreviatura ORN se refere, por outro lado, à ornitologia que é a ciência dos pássaros (do grego ‘ornis’ = pássaro) e, afinal, o filme não é mais do que a história de uma comunidade de sobreviventes na qual cada integrante tenta alçar vôo por todos os meios possíveis.


Moebius, ao mesmo tempo em que se dedicava a fazer uma revolução nos quadrinhos, desenha posters, cartazes publicitários, cartazes de cinema, retratos, caricaturas etc.
O poster (que reproduzo a seguir) me fez lembrar o livro “A Ilha do Bispo” do Rodrigo Cesar de Lima (2010 – edição do autor), onde uma comunidade de lobisomens atua nas sombras, modificando os acontecimentos da cidade na calada da noite. Por este motivo resolvi mostrá-lo aqui.



Poster para o filme “The Dogs”, poster que permaneceu inédito

Outro projeto excepcional de Moebius é reproduzido a seguir:

Abertura de “Paragonescia & outras estranhas histórias”, volume 6 da Graphic Novels de Moebius na Marvel (EUA, cerca de 1988). Assim que tiver tempo, pretendo fazer uma pesquisa sobre a influência que pode ter existido entre a Paragonescia do artista francês e o Parangolés, espécie de escultura móvel cujo conceito foi criado pelo artista brasileiro Hélio Oiticica (Nota do autor do post).

Jean Giraud foi um dos desenhistas mais premiados do mundo: EUA, França, Bélgica, Itália, Holanda. Em toda parte ganhou medalhas e prêmios de Melhor Desenhista. Ás vezes duas vezes, uma pelos seus álbuns assinados Giraud e outra por aqueles assinados Moebius.

Paulo Coelho teve um de seus livros mais famosos, “O Alquimista”, ilustrado por Moebius. Obra da maturidade, as ilustrações são como pequenos selos que mostram, com belíssima simplicidade, o estágio de maestria e domínio técnico atingido pelo artista. Esse trabalho, publicado em edição de luxo pela Editora Rocco em 1995, é um marco de expressividade legado por um desenhista que fez questão de preservar, nestas vinhetas, as técnicas tradicionais do desenho, o lápis, o giz, a aquarela, sem perder jamais a qualidade de seus desenhos.
Li em algum lugar que alguns dos projetos de Moebius mais recentes não haviam decolado por falta de financiamento. Pensei cá com meus botões que a sua arte poderia já ter sido banalizada nesta nossa realidade de excesso de informação visual e virtual. Felizmente não é isso. Nos links que encontrei a partir do blog do Paulo Coelho descobri que o artista permanecia saudável e criativo, dominando com maestria os novos recursos que substituem hoje os tradicionais materiais de desenho e pintura.

Para afixionados, é interessante visitar o site de uma exposição de Moebius patrocinada pela Fundação Cartier de Arte Contemporânea em 2008. São trabalhos já produzidos totalmente em meio eletrônico:      www.moebius-transe-forme.com
Essas novas técnicas são ilustrações feitas com tablete gráfico num programa adobe photoshop. No link a seguir você pode assistir a performance do próprio Moebius no stand da Wacom (empresa japonesa cuja marca é referência mundial em digitalizadores) na Feira Angouleme2009:

Nesse endereço (dailymotion) você também vai poder encontrar vídeos mostrando os torneios de “speed painting” realizados entre aprendizes de ilustração no Japão. E uma entrevista de 2009 com o próprio Moebius (em francês) produzidos pela   http://www.pixeltv.fr/


Para conhecer com mais detalhes o trabalho de Moebius, visite o seu site oficial: http://www.moebius.fr/Site-officiel-de-Jean-Giraud-Moebius---Official-website (em construção e em francês)

Os quadrinhos e o cinema se constituem hoje em uma categoria nobre de Literatura, a das Imagens. Caso o prêmio Nobel passasse a contemplar também esta classe de artistas, o que deveria penso eu, Moebius deveria ser um dos primeiros premiados, in memorian, infelizmente.